PERRENOUD,
Philippe. A Prática Reflexiva no Ofício do Professor: Profissionalização
e Razão Pedagógica. (trad. Cláudia Schilling). Porto Alegre: Artmed Editora,
2002.
Sem
um fio condutor, o debate sobre a formação de professores perde-se no labirinto
dos mecanismos institucionais e disciplinares. Cada um passa a defender seu
território, sua relação com o saber e seus interesses. O funcionamento das
instituições se reduz a uma coexistência quase pacífica entre representações e
estratégias antagônicas. Ainda que não acreditemos ingenuinamente em um
consenso, esperamos que um acordo sobre uma concepção global de formação
docente possa facilitar e tornar mais coerente a mudança (PERRENOUD, 2002, p.
9).
Uma
das ideias-força consiste em inserir a formação, tanto a inicial como a
continuada, em uma estratégia de profissionalização do ofício de professor.
Trata-se de uma perspectiva a longo prazo, de um processo estrutural, de uma
lenta transformação. Podemos ajudar a criar as condições para essa evolução;
porém, nenhum governo, nenhuma corporação ou nenhuma reforma pode provocá-la em
um curto espaço de tempo, de forma unilateral (PERRENOUD, 2002, p. 9).
“Profissionalização”: em francês, esta não é uma expressão
muito adequada, pois poderia insinuar que, “enfim”, a atividade de ensino
chegou ao status de profissão, embora essa evolução tenha se realizado a
partir do século XIX. Entretanto, só gradualmente esse ofício passou a ser
objeto de uma verdadeira formação. Além disso, em um primeiro momento, ela se
centrou sobretudo no domínio dos saberes a serem ensinados. Há pouco tempo, e
de forma bastante desigual, conforme o nível de ensino, começou-se a conceder
certa importância ao domínio teórico e prático dos processos de ensino e
aprendizagem visando a uma formação realmente profissional. Desenvolvida
para professores de ensino fundamental desde a criação das escolas normais, tal
componente da formação continua tendo menos peso no caso dos professores de
ensino médio e, em diversos países, continua sendo praticamente inexistente no
ensino superior. Nesse sentido, a profissionalização do oficio do professor
poderia ser entendida apenas como um importante acréscimo à parte profissional
da formação, ultrapassando o domínio dos conteúdos a serem ensinados
(PERRENOUD, 2002, p. 10).
Para
serem profissionais de forma integral, os professores teriam de construir e
atualizar as competências necessárias para o exercício, pessoal e coletivo, da
autonomia e da responsabilidade. A profissionalização do ofício do professor
exigiria uma transformação do funcionamento dos estabelecimentos escolares e
uma evolução paralela de outros ofícios relacionados ao ensino: inspetores,
diretores, formadores... (PERRENOUD, 2002, p. 12).
A
formação, inicial e contínua, embora não seja o único vetor de uma
profissionalização progressiva do ofício do professor, continua sendo um dos
propulsores que permitem elevar o nível de competência dos profissionais. Além
de aumentar seus saberes e seu savoir-faire, ela também pode transforma
sua identidade, sua relação com o saber, com a aprendizagem, com os programas;
sua visão da cooperação e da autoridade, seu senso ético; em suma, pode fazer
emergir esse novo ofício (…) e o qual tentamos descrever com detalhes
(PERRENOUD, 2002, p. 12-13).
Por
isso, a figura do profissional reflexivo está no cerne do exercício de
uma profissão, pelo menos quando a consideramos sob o ângulo da especialização
e da inteligência no trabalho (...).
Uma
prática reflexiva pressupõe uma postura, uma forma de identidade, um habitus.
Sua realidade não é medida por discursos ou por intenções, mas pelo lugar, pela
natureza e pelas consequências da reflexão no exercício cotidiano da profissão,
seja em situação de crise ou de fracasso, seja em velocidade de cruzeiro (…).
O
profissional reflexivo é uma antiga figura da reflexão sobre a educação, cujas
bases podem ser encontradas em Dewey, sobretudo na noção de reflective
action. Encontramos essa ideia – e não a expressão – em todos os grandes
pedagogos que, cada um a seu modo, consideram o professor ou o educador um
inventor, um pesquisador, um improvisador, um aventureiro que percorre caminhos
nunca antes trilhados e que pode se perder caso não reflita de modo intenso
sobre o que faz e caso não aprenda rapidamente com a experiência (PERRENOUD,
2002, p. 13).
Na
educação, o profissional reflexivo é o emblema de um desejado acesso ao status
de profissão de pleno direito, o que ainda não é atribuído socialmente à
profissão de professor nem reivindicado por todos que a exercem (PERRENOUD,
2002, p. 16).
O
desafio é ensinar, ao mesmo tempo, atitudes, hábitos, savoir-faire,
métodos e posturas reflexivas. Além disso, é importante, a partir da
formação inicial, criar ambientes de análise da prática, ambientes de partilha
das contribuições e de reflexão sobre a forma como se pensa, decide, comunica e
reage em uma sala de aula. Também é preciso criar ambientes – que podem ser os
mesmos – para o profissional trabalhar sobre si mesmo, trabalhar seus medos e
suas emoções, onde seja incentivado o desenvolvimento da pessoa, de sua
identidade. Em suma, um profissional reflexivo só pode ser formado por meio de
uma prática reflexiva (PERRENOUD, 2002, p. 18).
A
formação inicial destina-se a seres híbridos, estudantes-estagiários que se
tornaram profissionais. Ela deve formá-los para uma prática que, na melhor das
hipóteses, está nascendo, ou foi sonhada. A formação contínua, por outro lado,
trabalha com professores que estão exercendo sua função, que têm anos e mesmo
décadas de experiência. Portanto, podemos imaginar que a formação reflexiva
encontraria um terreno privilegiado entre eles; no entanto, isto é ao mesmo
tempo verdadeiro e falso (PERRENOUD, 2002, p. 20-21).
Dessa
forma, a formação contínua dos professores assumiu as características de um ensino
quase interativo, o qual pretendia transmitir novos saberes a professores que
não os tinha recebido no período da formação inicial. (…) a formação contínua
visava – e sempre visa – atenuar a defasagem entre o que os professores
aprenderam durante sua formação inicial e o que foi acrescentado a isso a
partir da evolução dos saberes acadêmicos e dos programas, da pesquisa didática
e, de forma mais ampla, das ciências da educação (PERRENOUD, 2002, p. 21).
De
modo surpreendente, durante anos, essas formações contínuas desconsideraram a
prática dos professores em exercício: o formador dizia-lhes o que era preciso
fazer sem perguntar o que eles faziam. De outra parte, de forma menos
prescritiva, expunha novos modelos (pedagogia por objetivos, teoria dos tipos
de texto, princípios de avaliação formativa, recurso à metacognição, trabalho
por meio de situações-problema), esperando que os profissionais o adotassem em
implantassem em suas classes sem levar em consideração a distância entre as
práticas vigentes e as inovações propostas. A problemática da mudança não
estava no centro da formação contínua. Ela se baseada no postulado
racionalista, o qual define que todo novo saber é fonte de novas práticas
apenas pelo fato de ter sido aceito e assimilado (PERRENOUD, 2002, p. 22-23).
Felizmente,
outras modalidades de formação contínua – intervenções em estabelecimentos,
acompanhamento de projetos ou de equipes, supervisão – priorizam as práticas e
os problemas profissionais. Assistimos, também, à emergência de ofertas de
formação deliberadamente centradas na análise das práticas, sem colocação
temática, sem um “biombo” dialético, transversal ou tecnológico. Mas também é
possível limitar o campo de análise a uma disciplina e privilegiar um
determinado enfoque. Eis por que certas formações propõem que os participantes
reflitam juntos sobre um tema anunciado; por exemplo, sua relação com o saber,
a forma como tratam os erros dos alunos (em geral ou em uma disciplina), seu
modo de composição e de correção das provas escritas ou seu estilo de regulação
de conflitos (PERRENOUD, 2002, p. 22-23).
Podemos
acrescentar a essas modalidades orientadas de modo explícito para a análise dos
processos e das práticas inflexões menos visíveis no interior das ações de
formação temáticas, as quais propõem saberes ou tecnologias. Os formadores não
podem ignorar que sua ação modifica muito pouco as práticas se ela se limitar a
fornecer informações, a oferecer saberes e a apresentar modelos ideias. Pode-se
invocar as “resistências irracionais à mudança”, mas será que isso não é muito
limitado? Uma parte dos formadores descobriu que sua única oportunidade de
transformar as práticas dos professores consiste em criar vínculos entre
o que eles fazem e o que lhes é proposto. A dialética das ciências incita a trabalhar
a partir das representações dos aprendizes, em vez de ignorá-las. Da
mesma maneira, uma nova prática só pode substituir a prática antiga se
considerarmos a coerência sistêmica dos gestos profissionais e seu processo de
transformação (PERRENOUD, 2002, p. 23.
Em
uma palavra: por que formar para a reflexão se isso parece ser tão natural
quanto é natural respirar? Por que necessitaríamos dessa aprendizagem na
formação dos professores se ela já existia?
Os estudantes classificados no vestibular ou em outros concursos já não
foram iniciados na reflexão desde o ensino médio e não a aplicarão, por
ventura, à sua formação e, no futuro, à sua ação profissionais?
É
verdade que os futuros professores precisam menos de uma formação profissional
para aprender a pensar, pois seu itinerário prévio já providenciou isso. No
entanto, será que eles possuem as posturas e os hábitos mentais próprios de um
profissional reflexivo? Entre a forma comum de refletir e uma prática reflexiva
não há a mesma diferença que aquela existente entre a respiração de qualquer
ser humano e a de um cantor ou de um atleta?
Estamos
falando, nesse caso, em uma postura e em uma prática reflexivas que sejam a
base de uma análise metódica, regular, instrumentalizada, serena e causadora de
efeitos; essa disposição e essa competência, muitas vezes, só podem ser
adquiridas por meio de um treinamento intensivo e deliberado (PERRENOUD,
2002, p. 47).
Motivos
ligados a formação de um professor reflexivo:
Compense
a superficialidade da formação profissional;
favoreça
a acumulação de saberes de experiência;
propicie
uma evolução rumo à profissionalização;
permita
enfrentar a crescente complexidade das tarefas;
ajude
a vivenciar um ofício impossível;
ofereça
os meios necessários para trabalhar sobre si mesmo;
estimule
a enfrentar a irredutível alteridade do aprender;
aumente
a cooperação entre colegas;
aumente
as capacidades de inovação (PERRENOUD, 2002, p. 48).
Sem
pretender afirmar que a formação acadêmica dos professores é ideal, temos que
reconhecer que ela é inferior à sua formação didático-pedagógica. O
desequilíbrio é grande no ensino médio e maior ainda no superior, já que uma
parte dos professores ocupa sua função sem ter nenhuma formação didática
(PERRENOUD, 2002, p. 49).
Poderíamos
chegar à conclusão de que, para fazer refletir sobre a prática, basta dominar
instrumentos gerais de análise objetiva e contar com um treinamento sobre
pensamento abstrato, enunciado de hipóteses e observação metódica. Por isso,
uma formação em pesquisa pode, em certa medida, preparar para uma prática
reflexiva, ou pode ocorrer o processo inverso (PERRENOUD, 2002, p. 49).
Uma
prática reflexiva não é apenas uma competência a serviço dos interesses do
professor, é uma expressão da consciência profissional... Os professores
que só refletem por necessidade e que abandonam o processo de questionamento
quando se sentem seguros não são profissionais reflexivos (PERRENOUD, 2002, p.
50).
Quais
são os ingredientes necessários para ir além do benefício imediato? Sem dúvida,
curiosidade e vontade de saber mais, ingredientes que distinguem aqueles que
fecham um livro depois de terem encontrado a informação desejada, daqueles que
adoram a brincadeira e continuam a ler... (PERRENOUD, 2002, p. 52).
Em
geral, a reflexão é mais fecunda se também for cultivada com leituras,
formações e saberes acadêmicos ou profissionais construídos por outros, seja
pesquisadores seja profissionais (PERRENOUD, 2002, p. 52).
Nessa
etapa, já podemos entrever como seria absurdo transformar a aprendizagem de uma
prática reflexiva em uma formação “metodológica” dissociada das formações
didáticas, transversais e tecnológicas. Aprendemos a refletir sobre os aspectos
importantes da prática, e não com situações ou exemplos insignificantes
(PERRENOUD, 2002, p. 53).
A
formação na prática reflexiva não é o único trunfo, mas é uma condição necessária (PERRENOUD, 2002, p.
54).