A autora orientada por uma vertente gramisciana inicia suas reflexões
enfatizando que existem tensões e contradições no exercício da política como um
tudo, traço típico de um país atravessado pela influência neoliberal,
especialmente a partir da abertura política cedida no governo de FHC. Também é
isto reflexo de uma cultura que assegura (erroneamente) que fazer política é
privilégio de alguns, especialmente dos já ocupantes das classes dominantes,
isto é, especialmente, como se os membros-cidadãos da sociedade civil não
fossem capaz de fazer parte dela e expor suas vontades.
Porém, é inevitável não constatar que atualmente, no Estado
contemporâneo, a sociedade faz um papel importante, ajudando a compô-lo
diretamente, especialmente por causa da abertura democrática, que maquiada ou
não oferece algum poder ao cidadão comum. Mesmo porque, em tese, os esforços do
Estado e da sociedade têm-se se direcionado para implementar cada vez mais essa
concretização democrática, para que os cidadãos tenham cada vez mais o direito
de falar e o Estado exerce seu dever de ouvir e solucionar.
Há de se enfatizar, porém, que a influência neoliberal é um entrave para
a democracia participativa, mesmo que a burocracia tenha, alguns vezes, sido
amenizada e que a sociedade exerça algum controle social, especialmente através
dos conselhos de direitos, ainda assim, falta muito para que haja democracia
participativa, ativa e revolucionária. Porque “hoje, (...) a fala de protesto é
destituída (...). Numa conspiração do silêncio (...). Nela, mais uma vez,
cria-se o círculo vicioso da exclusão: se me calo, submeto-me; se falo, sou
submetido” (RIBEIRO e LOURENÇO Apud SALES,
2004, p. 210). Isso, dentre outras situações, implica dizer que a sociedade
está permeada totalmente por um jogo de interesses e por vontades contrárias,
donde o mais forte se apropria dos recursos e das possibilidades e mantém na
inércia uma massa de indivíduos ditos comuns.
Para isso, nesta questão, é muito importante que os profissionais que
trabalham com os setores da sociedade que são afetados por esta lógica de má
distribuição e violência social, especialmente os assistentes sociais estejam atentos
para a real situação da infância e da adolescência no país, conectada às demais
refrações da questão social, dando, portanto, a prioridade necessária e
orientada por lei específica. As crianças e os adolescentes são, por vezes,
esquecidos nas discussões referentes à democracia e a cidadania, mas não
podemos esquecer que este segmento sofre uma série de violências: violência social expressa na falta de
projetos para emprego, educação, saúde, cultura, esporte e lazer; mesmo porque
são pessoas em desenvolvimento, logo, a atenção deveria ser priorizada,
inclusive na prática, não somente em leis e estatutos.
Mas há também de se considerar que esta ausência de prática crítica e
eficaz é reflexo de paradigmas históricos, pois os processos sociopolíticos e
econômicos incidem diretamente sobre essas questões, impedindo, inclusive,
plenitude na implantação do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente.
Política e democracia: a armadilha da
ideologia do consenso
Politicamente falando, os governos que são orientados por uma lógica
econômica neoliberal tendem a querer apaziguar os conflitos através de um
consenso forjado numa leitura abstrata e a-histórica da sociedade; uma
verdadeira violência social contra a sociedade civil, pois esta última está
totalmente permeada por valorações históricas e pela influência irracional e
capitalista dentro das relações sociais e da relação Estado/sociedade. Logo, os
governos neoliberais, “constroem sua legitimidade pela declaração da
impossibilidade da política, isto é, tornam a política ausente” (SALES, 2004,
p. 213). Quer dizer, o Estado literalmente se ausenta da prestação dos serviços
públicos, inclusive dos mais básicos e universais para os cidadãos. Isto leva
às formas anteriores de prestação de serviços, similares à filantropia e a
benevolência, porque o Estado cede suas obrigações aos movimentos sociais, às
empresas e à entidades religiosas, a ONGs, dentre outras, levando a uma
inclusão perversa, incompleta e remediada, “evidenciando uma cultura
assistencial e repressora da miséria” (p. 221) onde tem-se uma falsa impressão
que aquele que está fora das situações mínimas de convivência social, ou seja,
excluído, está dentro; isto através de um consenso forjado estatalmente, pois a
autora se pergunta se este “consenso é senão a pressuposição de inclusão de
todas as partes e de seus problemas, que proíbe a subjetivação política de uma
parcela dos sem-parcela, de uma contagem de incontados?” (2004, p. 214). Se é
ou não, o fato é que o consenso tende a excluir justamente porque visa perceber
todos como potenciais detentores de serviços e direitos, quando na realidade
não é assim; é preciso mesmo que se desestruturem os consensos e que se
inflamem os conflitos, só assim a verdade dos precisados chegará aos “ouvidos
do Estado”. Os intelectuais e os profissionais das ciências sociais,
principalmente, têm a responsabilidade de desmistificar e desembaralhar esses
falsos consensos e hegemonias, ideologias e utopias orientadas pela burguesia e
pela ação erosiva da democracia, efetivada pelo Estado neoliberal.
O espaço público aparece como local único para a existência de valores
como liberdade, cidadania e democracia; evidenciando-se através de uma retórica
marcada e ordinária que no espaço público existem oportunidades e visibilidade
de ações; quando, na verdade, os valores acima citados deveriam partir da
sociedade e serem apenas legitimados na esfera do público; é a sociedade quem
deve recusar os consensos e buscar a desburocratização do Estado; o problema é
que, o Estado não permite esta atividade, sequer supre as necessidades básicas
de seus cidadãos.
ECA, política e esfera pública: a mediação
dos conselhos de direitos
É inevitável não reconhecer que a infância e a adolescência dispõem de
uma importante ferramenta ao seu dispor, qual seja, o Estatuto da Criança e do
Adolescente, através da Lei nº. 8.069/90. Pois esta carta mantém sociedade
civil e sociedade política sobre aviso e responsabilizadas pelas questões
pertinentes a este segmento. Reside um problema aí no que diz respeito a
disposição prática das diretrizes nele presentes. Torna-se até fadigoso, todas
as vezes que nos referimos as Leis brasileiras, especificamente àquelas
garantidoras de direito, termos que diminuí-las, quando as inclinamos para o
campo da efetivação, mas isto é resultado de uma visibilidade histórica e real.
Todas as implicações contrárias a Leis e à plenitude da democracia e da
cidadania, é preciso que se reconheça, não é somente reflexo de uma influência
neoliberal, mas é também resultado de um regressar conservador e de uma cultura
política autoritária no Brasil, que centraliza e personaliza o poder. Foi
também resultado de lutas por parte de movimentos sociais e de setores
específicos da sociedade, a implantação dos conselhos de direitos, subdivididos
por segmentos sociais. Pois se trata de um “espaço essencialmente público, mas
permeado por conflitos de experiências e visões de mundo (...)” (SALES, 2004,
p. 220).
Prejudica ainda mais a promoção aos direitos e a uma cidadania plena a
confusão que é feita entre público e privado, também a nefasta mistura de
elementos confessionais, altruístas e de voluntariado, que prejudicam aquele
cidadão que já está imerso numa situação de desigualdade e precarização,
visualizar uma possível emancipação, quando na busca de soluções para seus
problemas básicos.
Conselhos e sociedade civil: a experiência
do CONANDA
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA
foi criado em 12 de outubro de 1991 e constitui-se num espaço público
institucional, de composição paritária, visando implementar a Política Nacional
de Promoção, Atendimento e Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes;
composto por dez conselheiros governamentais e dez não governamentais e seus
suplentes. Trabalha articulado com as esferas estaduais e municipais formulando
as diretrizes gerais da Política voltada para este segmento. “Logo, é
responsável pelo monitoramento nacional das expressões da questão social da
infância e adolescência, e pela regulamentação de medidas (...) afetas a esse
segmento, bem como aos conselhos de direitos e tutelares (...)” (SALES, 2004,
p. 224/225).
Em síntese podemos elencar como conquistas do CONANDA nesses últimos
anos: a garantia de seu funcionamento; a implantação dos Conselhos de Direitos
e Tutelares em quase todo o país; organização e realização das Conferências
Nacionais (4 ao todo); apoio a implantação e implementação do Sistema de
Informação para a Infância e a Adolescência (Ministério da Justiça); parceria
com o CNAS para discussão do ECA e da LOAS; aprovação do seu regimento interno,
de forma democrática e transparente; organização e realização de Encontros
Nacionais de Articulação com os Conselhos Estaduais; realização de Encontros
Regionais com os Conselhos Tutelares; acompanhamento do problemas das rebeliões
da FEBEM, se colocando contra o formato repressivo-menorista; apoio a
realização de pesquisas na área; realização de assembleias descentralizadas;
conquista de uma rubrica no Orçamento da União; eleição histórica de um
representante da sociedade civil para a presidência (2000); reafirmação do ECA;
elaboração das Diretrizes Nacionais da Política deste segmento e construção de
um pacto pela Paz, na IV Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente.
É louvável, segundo o texto, que há um engajamento encorpado de
representantes da sociedade civil, tendo, muitas vezes, que se requisitar a
presença dos participantes representativos do segmento governamental, isso
porque às vezes esse segmento quer “agir” de cima. Mas, ainda de acordo com
Sales (2004) “é preciso manter acesa a chama da mobilização social e se fazer e
ouvir desde a praça pública à universidade, à média, às instituições de
atendimento, às unidades de internação de adolescentes, dentre outras” (p.
231).
Mais que esperar pelas ações pertinentes e demandadas pela União, é
necessário que os Estados e Municípios criem suas próprias agendas sociais,
voltadas para tal segmento, com vistas à melhoria da qualidade e da abrangência
do atendimento as crianças e aos adolescentes.
“O início, o fim e o meio”: a política como
exercício da liberdade
Há de se considerar que a relação do CONANDA com o governo ora é intrincada, ora é entrosada, simplesmente normal. A principal dificuldade
encontrada desde sua criação tem sido a de natureza financeira. Não só para
este, mas para tantos outros conselhos, o empenho é em “superar de vez a
cultura da discricionariedade, da arbitrariedade, e o caráter ambíguo – entre
compaixão e a repressão – com que sempre foram tratadas a infância e a
adolescência” (SALES, 2004, p. 236).
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Imagem copiada de: cress-sc.org.br Maurílio Matos (um dos organizadores do Livro). |
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
SALES, Mione Apolinario. Capítulo
3: Política e Direitos de Crianças e Adolescentes: entre o litígio e a tentação
do consenso. In: SALES, Mione Apolinário; MATOS, Maurílio Castro de; LEAL,
Maria Cristina (Orgs.) Política Social, Família e Juventude. São
Paulo: Cortez, 2004. p. 207-237.