Inicialmente pergunta-se, através das palavras de Elias (1994):
Como é possível (...) que a existência simultânea de
muitas pessoas, sua vida comum, seus atos recíprocos, a totalidade de suas
relações mútuas dêem origem a algo que nenhum dos indivíduos, considerado
isoladamente, tencionou ou promoveu, algo de que ele faz parte, querendo ou
não, uma estrutura de indivíduos interdependentes, uma sociedade (p. 19).
- Então se indaga: tal frase se aplica ao filme “O fabuloso destino de Amelie Poulain"? Responda e explique.
Como
resposta, podemos afirmar que sim; tal frase se aplica ao enredo que é mostrado
no filme, e para justificar nossa resposta, passamos a expor algumas cenas do
filme e certas considerações de Elias (1994).
É importante dizer que o filme é uma produção francesa e as cenas
acontecem em meio as inconfundíveis ruas de Paris, em pontos turísticos
conhecidos mundialmente e historicamente bem visitados, logo locais clássicos
como: a igreja do Sagrado Coração, por exemplo, mas também e principalmente
dentro dos famosos cafés parisienses, acompanhados com culinária local e nas
estações de metrô. É uma produção de Jean-Pierre Jounet e se passa nos idos de
1973.
A principal personagem é Amelie Poulain, uma menina frágil e pouco amada
por seus pais que a protegem demais, a ponto de mantê-la ausente da sociedade
geral. Segundo Elias (1994) “a sociedade é uma porção de pessoas juntas” (p.
13). O fato de afirmar que a menina, aos seis anos mantinha-se ausente da
sociedade, dá-se numa dimensão teórica, especialmente se analisamos as palavras
do nobre sociólogo polonês mais adiante, isto porque Amelie, de uma forma ou de
outra, mantinha contato com seus pais e estes, por sua vez, mantinham contatos
sociais, através de suas funções de cidadãos franceses e de suas profissões
sociais. Amelie, portanto, em sua educação, recebia as influências da
sociedade, mesmo que pouco contato obtivesse, que amigos não cultivasse, parecendo apenas um peixinho de aquário. Porque, de acordo com Elias (1994) “não há
dúvida de que cada ser humano é criado por outros que existiam antes dele; sem
dúvida, ele cresce e vive como parte de uma associação de pessoas, de um todo
social – seja ele qual for” (p. 19).
A princípio o filme mostra um determinado encadeamento de situações
vividas por seres humanos, ao mesmo tempo e em diversos locais da realidade
macro. Um indício de que todas as nossas atitudes individuais estão sim cortadas
por uma influência maior, orientada pela sociedade. Percebe-se que: “cada pessoa singular está
realmente presa; está presa por viver em permanente dependência funcional de
outras; ela é um elo nas cadeias que ligam outras pessoas, assim como todas as
demais, direta ou indiretamente, são elos nas cadeias que a prendem” (ELIAS,
1994, p. 23).
Ainda mais no caso da personagem, quando inicia uma atividade para resolver
os problemas dos outros, fazendo jus a esta perfeita inter-relação de
indivíduos. Ela demonstra, em suas atitudes e ações que, muitas vezes, a
história dos outros “se encaixa como uma luva” na história da nossa vida pessoal
e que, a identidade dos outros pode sim explicar nossa própria existência, isto
é, tornando-a uma identidade eu-nós[1], o
que significa absorver sua compreensão com mais sentido. Assim é comum que, tal
como Amelie, que buscava resolver os problemas dos outros e acabava por
esquecer os seus, as demais pessoas busquem decidir as confusões dos outros e
esquecer as suas, mas isto ocorre somente no campo da imaginação, da teoria,
porque, na prática, quando buscamos elucidar situações de outrem, acabamos por
estar efetivando nossas proporias resoluções, uma vez que estamos totalmente
ligados aos outros, e especialmente a sociedade[2]
como um todo.
Muitas vezes a personagem se deteve envolvida nas situações requisitadas
pelos outros, seus próximos ou simplesmente desconhecidos, na tentativa de
elucidar mistérios, renovar memórias ou simplesmente ver pessoas felizes, ou
ainda impondo castigos sobre aqueles que maltratavam aos inocentes, em sua
concepção. Porém, na maioria das vezes, Amelie mostrava-se incapaz de resolver
suas próprias angústias e seus problemas. E ela conseguia perfeitamente se
envolver e adentrar, mesmo que imperceptivelmente, na vida dos outros,
inclusive dos desconhecidos, somente porque: “cada pessoa que passa por outra,
como estranhos aparentemente desvinculados na rua, está ligada a outras por
laços invisíveis, sejam estes laços de trabalho e propriedade, sejam de
instintos e afetos” (ELIAS, 1994, p. 22).
Depois de tudo dito, podemos concluir que Amelie era uma jovem
extremamente normal, que expunha o substrato guardado na lembrança de tudo que
havia feito ou do que incidiu sobre si, na infância e na adolescência. Desde
as manias disformes de seus pais até os conceitos por eles difundidos e por ela
apreendidos. Enfim, a jovem Amelie, naquelas suas atitudes, e de acordo com
Elias (1994) era nada mais que a continuidade do processo de desenvolvimento
(...) para a identidade de uma pessoa, que ocorre no decorrer de um processo,
que se usa das formas anteriores, para a formação de uma personalidade
posterior.
REFERÊNCIA
ELIAS, Norbert. Parte I: A
Sociedade dos Indivíduos (1939). In: A
Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1994. pp. 13-16/
151-165.
Filme: “O fabuloso destino de
Amelie Poulain, de Jean-Pierre Jounet.
Imagem retirada de: www.casasbahia.com.br |
Norbert Elias. Imagem retirada de: www.travessa.com.br |
Imagem copiada de: lounge.obviousmag.org |
[1]
Sobre identidade eu-nós, Elias (1994) diz que se trata de: “parte integrante do
habitus social de uma pessoa e, como
tal, está aberta à individualização. Esta identidade representa a resposta à
pergunta “Quem sou eu?” como ser social e individual” (p. 151).
[2]
Ainda sobre sociedade, Elias (1994) diz que “ela só existe porque existe um
grande número de pessoas, só continua a funcionar porque muitas pessoas,
isoladamente, querem e fazem certas coisas, e no entanto sua estrutura e suas
grandes transformações históricas independem, claramente, das intenções de
qualquer pessoa em particular” (p. 13).
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