DESCANSO PARA LOUCURA: 1 - O Poeta e a Obra - Lêdo Ivo

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sexta-feira, 1 de julho de 2011

1 - O Poeta e a Obra - Lêdo Ivo

Algumas “poesias curtas” de Lêdo Ivo:


Lêdo Ivo.
Em:
www.virgula.uol.com.br
"Lêdo Ivo nasceu em 1924, em Maceió/AL; ele não é somente um poeta, mas também um ficcionista, um ensaísta e um memorialista esplêndido. “Entender a opulência e a diversidade da poesia de ledo Ivo [constitui-se] em levar em conta o homem vário, complexo e inquieto que se move sem cessar por detrás de cada um de seus versos” (JUNQUEIRA, 2004, p. 25).
"Lêdo Ivo começa a escrever na década de 40, período mais árduo para este poeta, assim como para seus contemporâneos, se o relacionamos com a década anterior (30), na qual se encontrava “um terreno limpo do hieratismo parnasiano e da música simbolista” (JUNQUEIRA, 2004, p. 26).
"O fato de o ser um nordestino de Alagoas também contribuiu para que sua obra obtivesse um lado marcado – naturalmente – pelo memorialismo e pelo regionalismo, comuns noutros escritores como: Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rêgo e João Cabral de Melo Neto".
"A estreia de Lêdo Ivo como poeta ocorreu no ano de 1942 (aos 20 anos de idade), com “As Imaginações” (poesia). Tratava-se de uma “poesia desmedida, torrencial e de ritmos quase bíblicos” (JUNQUEIRA, 2004, p. 29).
"Lêdo Ivo não teve uma formação universitária, devendo ser considerado um autodidata; o fato é que ele era um grande leitor, mas tratou-se de um exercício de leitura ausente da orientação de um mestre.
A maior parte de sua produção inicial afasta-se do classicismo predominante nos idos de 1945, mas segue o caminho do “visionarismo surrealista, do lirismo coloquial, do dilaceramento ontológico e metafísico, do experimentalismo formal (...) e até mesmo na redescoberta do catolicismo, característico de toda a década de 30 e início da década de 40” (JUNQUEIRA, 2004, p. 30).
“Lêdo Ivo deve ser compreendido, também, à luz do excesso, de uma prestidigitação retórica e de uma linguagem encantatória que são apenas e singularmente suas. Se não a fizermos, consideráveis segmentos de sua vasta e polifônica produção poética correm o risco de permanecer indecifrados e, o que é mais grave, distante da estima que são merecedores” (JUNQUEIRA, 2004, p. 29).
A partir da década de 60 a poesia de Lêdo Ivo alcança a plenitude, mediante todos os recursos literários, os quais foi capaz de experimentar e expressar com maestria, na composição de sua obra, distribuída entre 1940 e 2004.
“Autor opulento e às vezes desmedido, Lêdo Ivo, como já dissemos, deve ser visto, também, à luz do excesso e da magia retórica (...). Quem tem medo de Lêdo Ivo somente o tem por temer a poesia, uma poesia que desceu às raízes do ser e ao horror da existência” (JUNQUEIRA, 2004, p. 43).

JUNQUEIRA, Ivan. Quem tem medo de Lêdo Ivo? (estudo introdutório). In: IVO, Lêdo. Poesia Completa: 1940-2004. TOPBOOKS EDITORA E DISTRIBUIDORA DE LIVROS LTDA, Rio de Janeiro: 2004. P. 25-43.

Eis as Poesias...

OFERTA
Jamais poderei murmurar ao teu ouvido a palavra noite
a noite as constelações o vento e a morte morreram
em nossa geografia só existem coisas nuas.
Meu amor.

O PANORAMA
Dia real, súmula do horizonte.
Como se eu, Dédalo, tivesse imaginado uma estátua,
 enfrenta-me a hora pura.
A paisagem é comentada pela música.

A JOHANNES VERMEER
Pintas apenas formas sob vários espaços:
a moça do turbante azul, cenas, paisagens.
Fazes, Jorannes Vermeer, a claridade,
o sol de tua vida obscura entre as ruas de Delft.
Operário da luz!

A GAIVOTA
Olhei uma gaivota entre o mar e o farol.
Era um material de plumagem e espuma,
a viagem real da paisagem nenhuma.

A ORIGEM DO SAL
Ao sul, o mar surge entre as angras.
A noite cai.
E os cata-ventos vão convertendo toda a paisagem em sal, em sal.

ESTAÇÃO DE TRATAMENTO
A gaivota sobrevoa o semáforo.
Nenhum rumor de água.
Nenhum frêmito de alga.
Apenas os esgotos lançam no leve oceano o sigilo da vida.

HOMENAGEM A UM SEMÁFORO
Aquele semáforo junto ao mar, na minha infância.
Sempre amei as coisas que indicam ou significam algo
– tudo o que, em silêncio, é linguagem.

PAISAGEM
A sombra do guindaste estremece na lama do porto apodrecido.
E o dia lambe o dorso dos cachorros do mato
que entre os mangues se escondem do barulho dos jatos.

ORDEM DE CIMA
Nunca vi o rosto.
Só conheço a voz que transmite ordens pelo alto-falante.
É a voz de Deus que está no céu ou a do gerente que é o Senhor da Terra?

INSPIRAÇÃO
Não creio na inspiração
essa bruxa radiosa que sopra a canção e te faz alegre e triste.
Mas que ela existe, existe!

A UM CRÍTICO
Sou o que sou quando não sou.
Sou o espelho onde os outros em mim se contemplam.
Pensas que não passo de um pássaro canoro embora eu seja uma esfinge.
E porque não me decifras eu te devoro.

A PALAVRA MAGNÉTICA
Na parede do mictório escrevi teu nome:
fruta que, mesmo comida, nunca matou minha fome.

O BANQUEIRO
Pensa o banqueiro na catedral ao dar seu óbulo dominical:
“Quem dá a Deus empresta aos pobres”.

A VERDADE NUA
Laborei em erro?
Acertei em cheio?
Em meio ao nevoeiro desfraldei o estandarte da minha verdade.

ZONA INDUSTRIAL
Oculta entre tapumes
a fábrica de curtumes
espalha no subúrbio
o perfume da tarde.

NUM BORDEL
O mundo é rumor e exagero.
A puta que geme na cama
diz que te ama.

MUGIDO
No nevoeiro
a morte muge
como um bezerro.

A VERDADE DO MENTIROSO
Canto o que canto
enquanto encanto.
Canto o que minto.
E me desminto
quando atravesso
o labirinto.

A PAISAGEM
A paisagem que vejo
está dentro de mim.
Somos todos espelhos
que se multiplicam
dentro de miragens.

UM EXEMPLO A SER SEGUIDO
Nada mais egrégio
que um sapo no brejo
austero cantando
para todo o universo.

UMA DÚVIDA SALUTAR
Poesia revolucionária
é a que canta ao povo
ou a que crê no ovo
de onde o novo nasce
de novo?

O OLHO DO PASSADO
No império da poeira
jaz a múmia acordada
e seu olho de mofo vigia
a luz do nosso dia.

NO MEIO DA RUA
Exilado na multidão
sou silêncio e segredo, e venho quando os outros vão.

NO NAVIO DA VIDA
Passageiro do navio
que não pára em nenhum porto
finjo não ver que a morte
me quer vivo, e não morto.

O OPERÁRIO
Sílabas, palavras,
som, signo, imagem,
metáfora, magia!
Operário da linguagem
trabalho noite e dia
e não ganho nada.

CHUVA DE JANEIRO
A vida é excessiva
como um açougueiro.
Vou de pés molhados
e na contra-mão
nas ruas inundadas
do meu coração.

DOMINGO VAZIO
A água que pinga
no prato sujo
dentro da pia
quebra o silêncio
do meu domingo
branco e vazio.

SABEDORIA
Viva o riso!
Só sabe rir quem tem dente de siso.

A LEITURA DO POEMA
Eis o modo certo
de ler um poema:
com um olho fechado
e o outro aberto.

O MENSAGEIRO
Quando sonho e digo
palavras incompreensíveis
é que estou falando
pela boca dos abismos.

JAZIGO PERPÉTUO
Aqui jaz a vanguarda,
rumor e celeuma
convertidos em pó.
Mas antes de morrer deu
muito trabalho aos tipógrafos.

OMISSÃO
Quem canta, nenhum de seus males
espanta. A palavra cala
e o sonho fica
- igual a uma planta –
atravessado na garganta.

A OBSCURIDADE
Poeta obscuro
que vive em caverna
ilumino o leitor
com a minha lanterna.

NOITE DE DOMINGO
Acabou-se a festa.
Resta, no silêncio,
o rumor da floresta.

IGNORÂNCIA
Quem, em seu gabinete,
fala em nome do povo
não sabe que a galinha
nasceu antes do ovo.

RI MELHOR QUEM RI POR ÚLTIMO
Deus? deuses?
Com seus lábios de poeira
os mortos riem
a morte inteira.

O LAGO HABITADO
Na água trêmula
freme a pálida
anêmona.

A CEIA DO CANIBAL
Deito-me e te como,
pão da noite, última
refeição do homem.

EMBRIAGUEZ
Quem bebe a noite
numa cisterna
bebe o vinho
da vida eterna.

A RESPOSTA
Não perguntes aos filósofos
nem ao vento que sopra.
Pergunta aos teus botões
e terás a resposta.

A TRAVESSIA
Quem ia na balsa
que, naquela noite,
atravessou o rio?
Vestida de preto,
era a própria Morte
morta de frio.

QUEIXA DO EDITOR DE POESIA
“Poesia não se vende,
ninguém entende!”
- suspira o editor.
Poesia! Poesia!
Ninguém te entende.
És como a morte e o amor.

MORMAÇO
Ando no mormaço.
Um sol escondido
rasteja entre as nuvens.
As árvores cantam
nas folhas e ninhos.
Agora aprendi:
toda a eternidade
cabe num só vôo
de um único pássaro.

LINHA CIRCULAR
Vou quando regresso.
Volto quando avanço.
Domingo do mundo,
dia de descanso,
o eterno é sempre agora.

CONSELHO A UM JOVEM POETA
Jovem poeta,
não fique triste
mas verso livre
Não existe.
No rigor e no excesso
poesia é ritmo,
números exatos
como uma tábua
de logaritmos.

A UM AMBICIOSO
Refreia tua ambição.
Não tenhas pressa.
Escadarias são
abismos às avessas.

O POETA MODESTO
Este é o meu legado:
poeira, vento e espuma.
Tudo é sempre nada
e coisa nenhuma.

OS ANOS DE APRENDIZAGEM
Aviso ao navegante
que me chama de mestre:
já não sou tão jovem.
Agora sou aluno,
um eterno estudante.

TEMPORAL NOTURNO
A chuva desta noite
pousa no meu sonho.
Pássaro molhado.

A PASSAGEM
De tua passagem na terra
nenhum sinal ficará.
O vento da noite arrasta
as folhas que pisaste.

DÚVIDA
Estás dentro de um espelho.
Não posso tocar-te.
És moça nua, flor
ou apenas a morte?

INSCRIÇÃO PARA UM TAPUME
Desejo tudo quando nada quero.
Ficar longe é o meu modo de estar perto.
Por mais que invente, sempre sou sincero.
Quanto mais sonho, mais estou desperto.

IMITAÇÃO
A vida imita a arte? ou a pergunta é ao contrário?
O que é mais importante: o caminho ou a lesma?
Aurora ao meio-dia, acrescentada à vida,
a arte nada imita a não ser a si mesma.

LAMENTAÇÃO DE CAMÕES
Fui amor, fui paixão e celebrei
o mundo, o vento e as ilhas infinitas.
Mas hoje, neste quarto centenário,
me assombra o meu destino.
Lingüistas e filósofos fizeram
de mim uma apostila.

A GERAÇÃO DE 45
Em 45
éramos uma legião.
Hoje sou, sozinho,
uma geração
e ao que antes fui
- se é que fui quando era
a minha quimera –
digo sempre não.

UM SONHO REPETIDO
Na noite florida
vinhas sempre nua
borboleta branca
pousada em meu sonho.

UM SEGREDO
Só para ti floresço,
disse a dália amarela
ao me ver passar.
E eu guardei um segredo
coberto de orvalho.

QUEM É QUEM
Para ser eu mesmo
eu sou o Outro.
Venho sempre de longe
como um navio no porto.

O POETA INVEJOSO
“Eu sou muito eu”,
diz o João-ninguém
num ar lamentoso.
E, cheio de inveja,
o poeta escuta:
o poeta que sempre
muda de pele
como as serpentes.

REFLEXÕES DE UM CHEFE-DE-ESTADO
No comício ou no leito
todo poeta é suspeito.
Temos que dar um jeito.

A CONSAGRAÇÃO
Quem me nega me atesta.
Toda vaia é um aplauso.
A pedra na vidraça
faz parte da festa.

BAIXADA FLUMINENSE
No cemitério de automóveis
uma capota azul
o mar entre sucatas.

O COVEIRO JOVIAL
Diante de uma cova aberta
o coveiro assobia
bom dia! bom dia!

NO MUSEU DE ARTE MODERNA
Aqui nada é moderno.
Tudo é antigo, até mesmo
a Vênus de acrílico.

A MORTE ANUNCIADA
Toca o sino, signo
do tempo assassino.

INVENÇÃO LOUVÁVEL
A palavra xoxota
alguém a inventou
mudando em linguagem
seu mais puro amor.

A NUVEM E A FONTE
“Não chores”, diz a nuvem errante
à fonte. “Aprende a ser feliz”.
E, como um poeta, a fonte ri
e chora de felicidade.

A VERDADE DA NOITE
No copo d’água
a dentadura postiça:
o riso no aquário.

A CAMA
Amor silencioso!
Só a cama gemia,
parceira insaciável.

POR QUE ME UFANO DO MEU PAÍS
Com seu fervor cívico
diz um proprietário:
“Minha pátria é o meu patrimônio.
E dela me ufano”.

O ARGUMENTO DA PECADORA
“Não pecar também é pecado”,
diz a bela pecadora
dando conta do recado.

O ESCRAVO
Cativo ao pedestal
e entre o céu e a relva
o leão de mármore
reclama a selva.

O NARCISO LITERÁRIO
Único! Original!
A ninguém me assemelho,
nem mesmo à minha imagem
refletida no espelho.

O MENTIROSO
Toda vez que sonho
minto a verdade.
Sou uma invenção
da realidade.

A UMA DAMA HESITANTE
Se a senhora aspira
a ser a musa eterna
do poeta, não hesite:
abra as pernas! abra as pernas!

ESCONDERIJO
A palavra-chave
sempre se esconde
atrás da porta.

O ASSENTO
Quem vai ao vento
perde o assento.
Mas que assento
perde quem vive
no vento? E quem,
não tendo assento,
não tem vento
para onde ir?

LAPA
Esta noite o amor do mundo mira-se no espelho
da puta desdentada vestida de vermelho.

O PURGATÓRIO
O Purgatório purifica as almas imperfeitas
que depois vão para o céu.
Tua falta é leve. E em tua sombra paina
fulge o sol matinal de Deus.

O INFERNO
A porta do inferno não tem chave.
Está sempre aberta, mas só para quem entra.
O fogo feito de frio queima as almas incombustíveis.
Todo o amor que amei jamais será cinza.
Na luta contra o demônio, sou sempre o vencedor.

O ALAGOANO (à parte)
Quem acha que o Nordeste
é ceguinho de feira
cantando folclore
ou é muito safado
ou está de miolo mole.

O SEGREDO
A poesia é um segredo
feito de êxtase e medo
que não confio a ninguém
- nem a mim mesmo.

PESCARIA
Puta! Puta! Puta!
A palavra absoluta
salta na linguagem
como uma truta.

PRESSA JUSTIFICADA
Os mortos vão depressa
e a explicação é simples:
todos os cemitérios
devem fechar às cinco.

A REPRESÁLIA
Certo prosador, um dia,
cometeu um anacoluto.
Em represália, os gramáticos
disseram que ele era puto.

DIANTE DO ESPELHO
Espelho, espelho meu
haverá alguém no mundo
mais diferente de mim
do que eu?

A METÁFORA DA GRUTA
Jamais uma metáfora
é coisa de somenos,
diz o poeta, penetrando
numa gruta de Vênus.

A HOMENAGEM
Minha sombra no chão:
a homenagem do sol
à minha solidão.

A ESCALADA
Subir é preciso.
Quem sobe a montanha
ganha o Paraíso.

A AMBIÇÃO
Um espermatozóide ambicioso
queria ser eterno: sua idéia
era fugir do zero e anonimato
e aos pôsteres deixar uma epopéia.

OS POEMAS
É meu corpo que escreve aos meus poemas.
Minha alma é a sucursal de minha mão.
As palavras me buscam no silêncio.
Palavras são estrelas que reclamam
o papel branco: céu, constelação.

IVO, Lêdo. Poesia Completa: 1940-2004. (Estudo Introdutório: Ivan Junqueira). TOPBOOKS EDITORA E DISTRIBUIDORA DE LIVROS LTDA, Rio de Janeiro: 2004. 1099 p.

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